sexta-feira, maio 23, 2008

 

Espelho, espelho meu…

Quando penso em família, lembro-me de imediato do bairro onde cresci, da comunidade com quem desenvolvi minha personalidade. Frequentávamos a mesma escola e a mesma igreja. Fazíamos festas comemorativas de São João na rua e parecia existir um certo padrão, um censo comum de respeito pelos pais e de amor pelos irmãos, bem como uma promessa de longevidade, de cuidado e união entre estes para sempre. Bem, esta é a minha história.

Sabemos que muitas pessoas cresceram em lares sem estrutura, em bairros onde os padrões não eram um exemplo a seguir, com dificuldades sociais, económicas e morais. Quantas crianças cresceram sem formação cívica, religiosa, sem alguma espiritualidade, durante a mesma década que eu? Antes e depois? Para estes, ou melhor, para apenas aqueles que conseguiram ‘vencer’, contra todas as adversidades, é justificável que eles possam ter rompido laços com a rua de suas infâncias, irmãos ou uma família inteira?

Parece-me difícil esperar que um, que tenha tido que ir buscar fora de seu ambiente, exemplos, força e modelos, tenha qualquer tipo natural e espontâneo de vínculo afetivo - no sentido de carinho - com suas origens e isso faz-me ponderar, questionar sobre os tais laços de sangue. Serão estes laços verdadeiros, quero dizer, reais a ponto de por si só, ser um argumento, uma razão para se manter uma relação?

Acredito ainda que exista situações menos óbvias, quero dizer, pessoas que viveram numa comunidade visivelmente bem estruturada, e até mesmo em família, mas com uma realidade emocional densa, com rejeição, despertando o desejo de libertação e logo, de romper também com o ‘mal’, tão logo lhe fosse possível.

É um fato que não podemos nos responsabilizar pelas decisões e opções daqueles que nos rodeiam e sobre isso definimos se vale à pena, ou não, mantermos certas relações. Mas se um irmão ou um pai mantém consigo uma constante relação de conflito, deve-se querer manter esta relação por causa do laço sanguíneo? Não deveria ser, este laço sanguíneo, um sinônimo de amor? Não é o amor um sentimento frágil que precisa de atenção e manutenção constante?

A idéia do laço sanguíneo só tem sentido se postularmos que existe um plano maior, de ordem espiritual, onde por alguma desconhecida razão, nascemos e crescemos ao lado e junto de pessoas que podem, ou não, serem compatíveis conosco. Contudo, é um fato que não existe ex-pai, ex-mãe ou ex-irmã, são títulos que em qualquer cultura, de qualquer tempo, sempre acompanharam um indivíduo por toda a jornada de sua vida e isso, é de certo, um vínculo. Mas para mim, um vínculo de palavra e não o de sangue.

Mas via de regra, os conflitos entre familiares diretos, não são devido as suas diferenças de gênio, de idéais ou posturas; como vejo, os conflitos são de total ordem, ou desordem neste caso, emocional. É possível viver e amar alguém que seja muito diferente de nós, que tenha visões políticas adversas e até choque de interesses sem que isso nos faça sofrer, sem que isso nos cause qualquer tipo de fixação. E aqui cheguei onde queria.

A fixação é o que de pior pode permanecer como traço naquilo que define o emocional de uma pessoa.

A fixação pode ocorrer em relação a uma época no passado, a um parente, a um antigo amor ou ainda, a coisas que conscientemente não saibamos. Como leigo que sou, vou salientar aqui o que me interessa comentar.

Como o próprio nome diz, a fixação implica em um indivíduo agarrar-se, fixar-se, prender-se a uma situação, alguém. Ora, uma vez que se esteja preso a algo/alguém, não tem como existir um acompanhamento maduro e natural em relação ao próprio crescimento, em relação ao resto das faculdades que estão livres para se desenvolver. Por exemplo, hoje, se me pedirem para desenhar uma casa, uma árvore e uma pessoa, o desenho não surgirá muito diferente daquilo que surgia quando eu tinha 10 anos de idade e tudo, por ser faculdade de meu cérebro negligenciada, negada. Nunca exercitei desenhar e por isso minha mente continuou a executar esta tarefa no limite de expertisse que conhece para tal.

Se foi injusto termos sido mal assistidos, mal acompanhados, não assistidos por completo, termos sido traídos, termos confiado na(s) pessoa(s) errada(s), termos perdido alguém que nos era importante, termos nos mudado de uma zona onde éramos felizes para uma aborrecida, termos sido abusados, debochados, não incentivados, incentivados em excesso, enfim, o que quer que tenha marcado o passado, pela positiva ou negativa, o que quer que nos tenha prendido, DEIXE-NO IR!

É preciso entender que amadurecer não significa o mesmo que envelhecer. Não podemos esperar que uma criança de 1ª série resolva uma equação de Báskara, ensinada na 8ª, certo? Pois ela não tem capacidade mental, orgânica de compreender ainda. Em diferentes níveis, este processo continua por toda a nossa vida e aos 50 anos de idade entenderemos assuntos de forma diferente que o entendíamos aos 30. Logo, sua atual idade, hoje, agora, é incompatível com aquela onde se formou a fixação e de certo, com dedicação, se o assunto fixado passar pelos filtros na consciência da idade atual, muito pode mudar.

É preciso iniciar um processo de dessensibilização, ou seja, ‘olhar’ para trás, para o ponto identificado onde machuca mais e pensá-lo ao invés de apenas relembrá-lo. É preciso pensar na pessoa que se é hoje, nas exigências que este um sofre do meio hoje, de forma a perceber que a realidade a volta mudou, que requer uma nova postura. É preciso aceitar o que magoou como algo que inevitavelmente é imutável, mas com a certeza que é inerte. Que lá ficou e que de lá até o agora, adquirimos mais força e sobre tudo, gerenciamos forma de àquilo se ter sobrevivido.

Mas a mágoa entre entes de família, talvez, para mim, seja a mais complicada. A confusão surge da mescla, da falta de nitidez conceitual no que diz respeito à natureza destas relações. Pois existe amor, mas há raiva, há condescendência e pena. Há todo um sentimento de se querer justiça e que toda a realidade mude, se transforme de forma imediata e dê alívio a quem sofre.

Num cenário assim, o que mantêm o quê afinal? Seria presunção minha em definir A resposta, mas como vejo, posso distinguir alguns fatores: O mero conceito do laço sanguíneo pode ser alimento para manter um amor entre familiares, como um casal que briga mas que não aceita o divórcio, por exemplo.

Ou as memórias daquela relação, antes do ‘ponto de virada’, são tão maravilhosas e satisfatórias que se transformaram, na verdade, numa meta, num lugar para onde se quer voltar, reconstruir, e daí, uma autêntica cruzada, uma luta em refazer e restabelecer um cenário começa. Contudo, isso implica em mudar o universo de uma outra pessoa, ou mais de uma, com outras disposições e direções na vida. A frustração deste retorno que se começa a perceber ser impossível, alimenta a mágoa, a raiva e a pessoa a qual não se consegue mudar, de forma que tudo volte a ser como era antes, passa a ser a causa, a razão do entrave. A raiva aumenta, pois ela está impedindo o sucesso do processo. A saudade prende a pessoa àquelas memórias, ela quer voltar, precisa de companhia para o cenário perfeito, mas esta já prosseguiu com novos planos e lhe falha com a ajuda requerida.

Ainda, poder ter havido sub julgamento, descaso, deboche e escárnio num nível em que a pessoa passou a assumir tais características, crescendo numa luta constante onde, ou ela vive de uma forma que não dê a ninguém a chance de recriar o passado, ou seja, com pouca sociabilidade, sem conseguir aprofundar relações ou extremamente agressiva, ou ainda, num profundo estado de angústia, como se vivesse num disfarce, tentando evitar que as pessoas a volta descubram que, afinal, ela corresponde de fato a todos os apelidos a ela associados no passado.
Um constante sentimento de incerteza e de invalidação onde a culpa total é atribuída aquele que no passado exercitou este maltrato. Contudo, esta fraqueza de auto estima constituída, a impede na verdade, de perceber que o meio atual não remonta a ‘morada onde tudo teve lugar’ e que há diferentes pessoas e pessoas no planeta e que apenas uma, aquela do passado, foi quem lhe machucou. Esta falta do conhecimento do progredir, este não saber o gosto da coisa, lhe gera medo e por já viver em constante dúvida, não consegue definir coragem e mudar sua vida, libertar-se de seu opressor que na verdade, hoje, justifica o fato dela ser uma pessoa miserável, pois sem arriscar, ela garante a possibilidade de haver mais problemas gerando uma falsa sensação de segurança, fortalecida no não perdão, na raiva por seu agressor.

Os cenários acima, como entendo, denotam pessoas acostumadas, educadas ou viciadas a olhar para as suas necessidades com magnitude, ou seja, a sua vontade, os seus problemas, a sua dor é tamanha, que ela não consegue enxergar as causas e razões exteriores que acarretaram tal mudança. Ela não consegue perceber as motivações da outra pessoa ou o ‘porquê’ que gerou o término de seu idílio. A ela não interessa as explicações e as razões do contexto geral envolvidos nas primícias de sua dor, pois isso por si só, este esclarecimento, não desfaz o ‘mal’, e é aí onde começa a sua responsabilidade, aí começa a sua decisão em parar, aceitar, enxergar, entender o movimento das coisas.

Alguém nos bater, por exemplo, é de responsabilidade do agressor. Daí em diante, viver lamento a dor sentida ou alimentar um medo que possa acontecer novamente já é de responsabilidade do agredido.

Se encostarmos nosso nariz a um espelho, a única coisa que vemos é o reflexo de nosso rosto. Na verdade, de forma parcial, pois vê-se bem os olhos, o nariz, mas perde-se ângulos diversos da boca, orelhas, queixo... À medida que se for afastando o nariz do espelho, a figura de seu rosto começa a compor-se de forma geral e quanto mais você se afasta do seu reflexo, mais você consegue ver, refletido no espelho, o resto das coisas que estão a sua volta, atrás de si. Obviamente, se você se afastar demais do seu reflexo, você volta a perder a nitidez de percepção da sua imagem, pequena e distante, e o reflexo de tudo a volta parece fundir-se numa bidimensional pintura.

Não podemos lutar contra pessoas que vivem com o nariz colado a um espelho ou mesmo muito próximas a um. Também conviver com pessoas assim é difícil, pois exige de nós, de nossa consciência e paciência, pois somos humanos, todos temos nossas contabilidades emocionais e todos cansam em viver uma relação que não seja de duas vias.

Pessoas assim, frequentemente sentem-se vítimas das circunstâncias e acreditam ser azaradas, acreditam não ter chances, não ser compreendidas. Tornam-se agressivas, como forma de defesa para se poder continuar vivendo num mundo tão inóspito, repleto de reveses, pelo menos como elas sentem. Sua dor é em conceito real, apesar de, na verdade, ser apenas lembranças. Seu entendimento é limitado, unilateral e como não se permitem desenvolver este lado de fortalecimento do emocional, acabam por reagir por reflexo a todos os incidentes ou acidentes da vida, refortalecendo a idéia de sem saída, contrariados e injustiçados. Infelizes.

Há muitos anos eu introduzi a minha estrutura de pensamento que há sempre uma escolha. Isso dificulta-me em estar entre os dez mais simpáticos com aqueles que ‘escolhem’ não saber que há sempre uma escolha. Principalmente se for com familiares, pois infelizmente, sempre ‘escolho’, por me deixar ser arrastado pela conduta do outro.

Mas, apesar de não ter uma crença religiosa ou fé em alguma divindade, tenho esperança. Desejo que as pessoas que nascem numa mesma família, saibam ajudar e principalmente se deixar serem ajudadas. Que compreendam quando é tempo de se afastar e quando é tempo de resgatar mas sem que nunca se esqueçam do vínculo que as unem, seja ele de sangue, de palavras ou, porque não, apenas por amor. Seja uma escolha ou não.

Uma boa semana para todos.

Eduardo Divério


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