terça-feira, setembro 04, 2012
‘Que Deus me a leve que não a acolho de criada!’
A primeira vez que eu ouvi isso, eu sequer
consegui compreender o que me diziam. Mas não me refiro apenas ao sentido do
dito, pois não conseguia distinguir também a fonética de onde terminava uma
palavra e começava outra, naquela miscelânea consonantal com vogais
estranguladas.
Finalmente, lá minha colega pôs tudo por
escrito e de seguida contou-nos que sua tia, já uma senhora, era quem lembrava destas
palavras vindas de sua própria mãe, com os braços atirados ao firmamento e uma
expressão de sofrimento a proferir… o título deste texto. Diz-se que a miséria
em que viviam era tamanha que aquela pobre mãe pedia a Deus que poupasse sua
filha de tanto infortúnio e que assim a levasse para o céu, já que ela não tinha
condições de lhe criar.
Bem, verdade é que Deus não levou a menina para
o céu e a mãe, bem ou mal, ainda acabou por ‘acolhe-la’ de alguma forma. Mas se
ter chegado à terceira idade não foi tempo o suficiente para esquecer a
rejeição, maternal e divina, e se afinal tudo já passou, por que esta lembrança
segue viva?
Todos nós temos sensações a viverem
clandestinamente dentro de nós que, apesar de serem adversas e até não
relacionais com o adulto que somos hoje, parecem que sempre lá estiveram, por
lá sempre habitaram, por vezes até na voz de outra pessoa. Ecos…
Enfim, mas por que eu trouxe esta lembrança à
tona? Primeiro, porque desde que regressei à Portugal que não havia escrito e
não queria um texto óbvio sobre migração e mudanças. Mas ao mesmo tempo, como é
o propósito do meu blog, não poderia deixar de registar esta fase, esta
transição que tenho vivido, lenta, longa e demorada.
É difícil eu relembrar esta história e não
pensar que eu mesmo tenho andado atrás de ser ‘acolhido’, mas numa dimensão
exponenciada, pois diria que mais pela vida do que por alguém. Contudo, à
semelhança do conto, nem os céus se abrem e nem eu encontro o conforto, mas de
qualquer jeito, de algum jeito, lá sigo eu para terceira idade.
Então resolvi pôr por escrito a tal frase, que
me lembra a tal história, onde mesmo quando parece não haver esperança, mesmo
quando parece não haver recurso, a vida segue seu curso, despreocupada, conosco
de arrasto, uma idade atrás da outra. Mas então, para que sirva de algo, que
seja para eliminar, impedir, evitar a fonte produtora de ecos, desses que se
propagam pelo tempo em forma de lembranças. Com isso quero dizer que, qualquer
que seja o jeito, desde que dê jeito, que seja pleno, só por ser parte do hoje.
E isso é um desejo. Também uma sugestão.
Se o
‘céu não me leva’ (sem conotações suicidas, por favor) e se a vida ‘não me
acolhe de criado’ e porque cá se segue, que seja pelo melhor. Que se desenvolva
a capacidade de fazer o melhor e que o deixe vir!
Dedico este texto à todas as pessoas que hoje
precisam de algum acolho na alma.
Uma boa semana à todos.
Eduardo Divério.